segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

fossilização de um coração

Enrijece coração!
Torna-te seco como um fardo de palha.

Endurece coração!
Torna-te maciço como uma estátua grega.

Embrutece coração!
Torna-te gélido como uma lápide tumular.

Petrifica coração!
Torna-te fóssil como uma trilobite mineral.


O coração é um amuleto obsoleto que penduramos teimosamente num fio d’ouro.
Rapidamente, ele cai e parte-se, ficando só o fio.
O fio, que dantes era d’ouro, agora é de corda.
A corda que enforca o coração na garganta.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

palavras que nunca existiram

Para os mortais
o melhor seria nunca terem visto
a luz do sol
Baquílides


sozinha
assim estou
assim estarei

esperar?
sonhar?
em vão

com a força de mil homens
retiro o ar
peso (já) morto
atiro-o ao abismo
asfixio e expludo

nada resta
nem os meus restos mortais

Aqui jaz o silêncio de quem nunca verdadeiramente existiu.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

casa ruinosa

Oh as casas as casas as casas
as casas nascem vivem e morrem
Ruy Belo


A minha casa é uma falésia em abismo, com vista para Marte, e com três andares em ruínas. A cave do passado, o rés-do-chão do presente e o sótão do futuro estão soterrados na cal de fuligem. Não tenho mobília afetiva, por isso durmo sobre a tijoleira partida e fria. Os alicerces ferrugentos e nauseabundos soltam clamores de bradar aos céus. Eu fecho os olhos e tapo os ouvidos à espera que tudo desabe e, por fim, acabe, para talvez recomeçar.

A minha casa é um ser tão vivo e tão morto quanto eu.

sábado, 18 de janeiro de 2025

variantes

hoje

quero estar inanimada 
como um gato morto 
deitado na berma 
da estrada 

deserta e escura 

onde
nunca existiu ninguém 
não existe ninguém 
e nunca existirá ninguém

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Hoje apetece-me...

Hoje apetece o mundo pelo modo
Como vai despenhar-se um trapezista.
Natália Correia


Hoje apetece-me partir o relógio
para te encontrar mais rápido.

Hoje apetece-me incendiar a casa
para fugir e desaparecer.

Hoje apetece-me apanhar um avião
para dar a volta ao mundo.

Hoje apetece-me ir à lua
para morrer como uma estrela.

Hoje apetece-me explodir
para voltar a nascer.

Hoje apetece-me dançar com a chuva e o vento
para sentir que o coração ainda bate.

Hoje apetece-me casar com qualquer um
só para te esquecer.

Hoje apetece-me o possível e o impossível,
porque quando se ama
profundamente,
nada basta,
a não ser a presença de quem se ama.

Há horas em que a ausência (de ti) elouquece(-me).

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025