quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

a turbulência das nuvens

A verdade é muito difícil, magoam-se os pés em caminhos de cabras, chega-se lá, aonde é preciso chegar, com eles em sangue, e para quê?
Maria Judite de Carvalho


Pés na terra
Mãos na cintura
Cabeça no ar

Nuvens ternas
desfazem-se nas maças do rosto
como algodão-doce

Nuvens brancas
anseiam ser tecidas
por agulhas de lã

Nuvens oníricas
desejam ser pintadas
com as cores do arco-íris

Sempre quis caminhar sobre as nuvens, mas a sua turbulência faz do caminho do céu um caminho de cabras.


quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

ataraxia apática

Do nascimento ao falecimento, 
a vida vai-nos ensinando a deixar
 - tudo e todos -
até a própria vida.

Deixar de: 
sorrir, olhar, tocar, falar, pensar, desejar, sonhar, gostar, amar, suspirar, respirar, viver.

A vida é um contínuo deixar.



terça-feira, 3 de dezembro de 2024

ver perto ao longe

Estar fora é estar dentro. É ver longe, mas perto. É ver o todo em vez das partes. É ver-te emoldurado no real, numa casa feliz, com mãos na porta e pés na laje. 

Eu, objeto invisível no meio da rua, passo pela tua casa. Parar ou seguir é indiferente. Tu não me vês. Ninguém me vê. E os meus gestos inúteis são espectros irresolúveis, pois nada possuo.

Como posso querer eu dar tudo sem nada possuir?
Como podem querer as minhas mãos vazias agarrar as tuas mãos cheias?

Ah, insatisfação poética, como me matas!

segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

nefelibata

tu que escreves sem sentir,
tu que escreves sem sorrir,
o que fazes 
    AQUI?

Escrever é sobreviver
à taciturnidade.
Se não sabes morrer,
não sabes viver.
Saber viver é saber
    m
    o
    r
    r
    e
    r

Senta-te e olha,
repara,
aquieta-te no silêncio,
pois é só aí
que te encontras
e que escutas 
[dentro de ti] 
o que é:
    verdade     e     mentira.   

Só assim é que vais respirar
    fundo
e tocar nas nuvens,
onde a tua essência 
    p a i r a
sem desaire,
pura e cálida,
como o primeiro
    sOl 
de inverno.

sábado, 30 de novembro de 2024

ser ego

Somos tão hipócritas quando achamos que nos interessamos por algo ou alguém. Tudo é falso. Tudo é ilusório. Tudo é egóico. 

sexta-feira, 29 de novembro de 2024

casa no ar

Elas doíam-me, as estrelas,
como se tivera casa no ar.
Eugénio de Andrade


A nossa casa não tem: laje, porta, chão, telhado.
A nossa casa tem: paredes nuvens, onde aos encontrões nos encontramos e, talvez, sonhamos.
A nossa casa é uma casa no ar.
A nossa casa não é uma casa.
A nossa casa não é nossa. É apenas minha.

sábado, 23 de novembro de 2024

fotodrama

Ontem fotografei o teu rosto com a minha retina. Um rosto belo, sincero, despojado. Um rosto sensível ao toque da poesia dos meus dedos. Bastou-me um disparo fotográfico para perceber a filosofia das rugas. Os caminhos que traçam e definem uma história sem mim. Durante a madrugada, fechei-me na câmara escura do meu quarto, luz vermelha e mórbida, onde o processo negativo-positivo revelou as cores verdadeiras do teu rosto. Hoje, à luz pálida da manhã, vi outras cores. Ainda verdadeiras, mas monocromáticas. Fiquei triste, pois só tirara uma foto e não sei se ainda terei tempo para mais. Queria tanto colocá-la na moldura da minha cabeceira, ao lado dos livros... Com as mãos trementes e tementes, coloquei a foto e a moldura na cápsula dos sonhos perdidos, debaixo do leito frio e funesto, onde sempre me deito sem nunca saber se acordarei amanhã.