sábado, 8 de fevereiro de 2025

Larguei-te na ria, meu amor.

Larguei-te na ria.

Deixei-te ir 
como um barco 
a arder
num funeral viking.

Antes agarrei-te
ou tentei
mas as tuas mãos 
já cobertas de lodo
escorregadias
tocaram as minhas
fugazmente
e dançaram 
a dança do esquecimento.

Lentamente
e silenciosamente
afundaste-te
na maré alta
sem pestanejar
sem bracejar.

Triste e melancólica
sentei-me na margem
à procura dos olhos d'água
mas nunca mais os vi.

Agora 
resta-me esquecer-te 
para sempre.

Apagar da memória que o sorriso mais belo que alguma vez vi foi o teu.






quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

uma casinhota à beira ria

Como te poderia deixar, se não estiveste?

Como te poderia amar, se não entraste?

Como poderias (querer) entrar, se nem laje, nem porta existem?
Como poderias (querer) trocar uma mansão por uma casinhota? 

Será sobre as ruínas de uma casa impossível
que (re)construo a minha casa possível.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

(era uma vez) um corpo

um corpo

uma perna
outra perna
um braço
outro braço

pés e mãos
seios, barriga, costas, nádegas

um rosto
olhos, nariz, boca

corpo nascente
corpo fonte
que mata a sede do fogo
até arder em espuma

um dia, talvez, será só um corpo ou um corpo .

sábado, 1 de fevereiro de 2025

mãos atadas

Tenho as mãos atadas.
Tenho as mãos atadas e não te consigo amar - despreocupadamente. 
Tenho as mãos atadas e não te consigo tocar - deliberadamente.
Peço-te que as soltes, mas o teu emudecimento aperta-as cada vez mais. 
Engulo um grito de dor e semicerro os olhos. 
Caem-me algumas lágrimas e, mesmo assim, ainda te consigo ver bem, apesar de longe. 

Para além das mãos atadas, também o coração, pois nunca mais me esqueço daquela manhã de verão, quando te vi com ela, rumo à praia, de mãos soltas.

 

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

fossilização de um coração

Enrijece coração!
Torna-te seco como um fardo de palha.

Endurece coração!
Torna-te maciço como uma estátua grega.

Embrutece coração!
Torna-te gélido como uma lápide tumular.

Petrifica coração!
Torna-te fóssil como uma trilobite mineral.


O coração é um amuleto obsoleto que penduramos teimosamente num fio d’ouro.
Rapidamente, ele cai e parte-se, ficando só o fio.
O fio, que dantes era d’ouro, agora é de corda.
A corda que enforca o coração na garganta.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

palavras que nunca existiram

Para os mortais
o melhor seria nunca terem visto
a luz do sol
Baquílides


sozinha
assim estou
assim estarei

esperar?
sonhar?
em vão

com a força de mil homens
retiro o ar
peso (já) morto
atiro-o ao abismo
asfixio e expludo

nada resta
nem os meus restos mortais

Aqui jaz o silêncio de quem nunca verdadeiramente existiu.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

casa ruinosa

Oh as casas as casas as casas
as casas nascem vivem e morrem
Ruy Belo


A minha casa é uma falésia em abismo, com vista para Marte, e com três andares em ruínas. A cave do passado, o rés-do-chão do presente e o sótão do futuro estão soterrados na cal de fuligem. Não tenho mobília afetiva, por isso durmo sobre a tijoleira partida e fria. Os alicerces ferrugentos e nauseabundos soltam clamores de bradar aos céus. Eu fecho os olhos e tapo os ouvidos à espera que tudo desabe e, por fim, acabe, para talvez recomeçar.

A minha casa é um ser tão vivo e tão morto quanto eu.