segunda-feira, 24 de março de 2025

fina tristeza

Imparável sede:
onda sobre onda
(

esta amortalhando a anterior 
)
o mar é um enterro.
“O desembarque das ondas”
Daniel Jonas



Há uma fina tristeza que se evapora da tremulina primaveril. Está um dia de sol, com poucas nuvens, os pássaros cantam, as pessoas correm de um lado para o outro, como é habitual às segundas. Está tudo certo. Juro que está mesmo tudo certo. E eu estou feliz. Juro que estou mesmo feliz. No entanto, sinto um ligeiro desconforto, como se a minha postura de ser e de estar na vida ainda não fosse a mais rectilínea possível. Porque é que sinto uma imparável sede de uma solidão acompanhada? 

terça-feira, 18 de março de 2025

Entrada de um diário de fumo

 - A sinceridade, num diário, não consiste em dizer toda a verdade mas em não dizer mentiras.
Fernanda de Castro

Ontem deixaste de ser o meu Amor. Transformaste-te num homem normal, sem contornos poéticos. Pelos vistos, era a poesia que te elevava... e eu, como ávida leitora, li o teu livro até ao fim, apesar do desencanto a meio.

Ontem, naturalmente, deixaste de ser. Tornaste-te cinza, sem crematórios possíveis, e disperso, foste com o vento. Talvez, esse foi sempre o teu destino. Seres rescaldo (com ela), em vez de incêndio (comigo).

terça-feira, 11 de março de 2025

fogo diminuto

É deprimente aceder ao fogo. 
Atear uma fogueira apagada. Provocar incêndios proibidos. Ver labaredas pequenas e receosas. 

É tão deprimente ver fogo que não arde e não vira queimada. 

sexta-feira, 7 de março de 2025

a chama que chama

É preciso arder. E não só nos versos.
Eugénio de Andrade


Assola-me ver a chama da paixão de frente. 
Uma força repentina e imperativa que me arrasta para o paraíso, e logo, para o inferno. 
Uma luz cega que só me deixa ver como as mãos. 
Um calor intenso que me torna incandescente.

Depois do incêndio, eu, carbonizada, escrevo o teu nome no chão da lareira, na esperança que o ouças e tragas mais lenha. Na verdade, os dias sem ti são dias de inverno permanente e rigoroso. A casa treme tanto de frio que quase parece um terramoto. Está tudo a desabar, mas os alicerces do desejo mantêm-se cada vez mais fortes e robustos. No entanto, como sobreviver dentro de uma casa abandonada, ainda em construção? Onde estão as instruções para uma casa pré-fabricada? 


O atropelamento das respostas pelas perguntas excede-me e anula-se, configurando o momento, onde reconheço a inutilidade das minhas equações e elucubrações; e onde reconheço ainda a barbaridade das minhas perguntas, pois não existem respostas. 

    Mesmo assim, atrevo-me a perguntar: 
    O que é afinal a chama da paixão?
    Se é fugaz, será ilusão?
    Se é obsessiva, será loucura?
    Se é verdadeira, será amor?
    . . .

Reação química ou não, o mandato é sempre o mesmo — a r d e r . 
E tem de arder até ao fim dos fins, onde tudo recomeça para ser de novo.

terça-feira, 4 de março de 2025

ver o sol da janela do quarto

Há uma intranquilidade no devir. 
O espaço entre o que é e o que não é torna-se vazio e inútil, quando o que pode vir a ser nunca se concretiza.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

palácio frondoso

rondo o teu palácio frondoso
como um cão vadio e raivoso
à espera dos restos
da tua ceia farta

com tanta fome e sarna
um dia, o cão
há-de desaparecer
e os latidos e grunhidos
nunca mais incomodarão
a tua intocável felicidade