segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

palácio frondoso

rondo o teu palácio frondoso
como um cão vadio e raivoso
à espera dos restos
da tua ceia farta

com tanta fome e sarna
um dia, o cão
há-de desaparecer
e os latidos e grunhidos
nunca mais incomodarão
a tua intocável felicidade 

domingo, 23 de fevereiro de 2025

Sempre que é domingo...

Sempre que é domingo e está sol, nasce em mim uma vontade irreprimível de divagar por jardins, parques, campos, montanhas ou praias, com os olhos fixos no céu azul, e com as mãos ocupadas pelas tuas, numa busca desenfreada, enquanto cantamos poesia. Como o voo é alto, só os pássaros nos veem e ouvem.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

novo amanhecer

Depois de uma longa noite escura, amanheci como um dia de verão no sul. 
Sol alto, grande, brilhante. Raios solares disparados como flechas de cupido. 

Olhei-me ao espelho e vi-me lúcida, luzidia e transparente. 
Acabara de (re)nascer. Desta vez, sem mãe nem pai. Sem ninguém à minha volta. Dei à luz a mim própria. Não chorei nem ri, sorri apenas. Fui mãe e filha ao mesmo tempo. 

Despretensiosamente sinto-me mãe natureza e quero-me tanto que até escrevi uma carta de amor com remetente e destinatário iguais 
- eu mesma.

domingo, 16 de fevereiro de 2025

náusea

Abro a janela e faço algo sem poesia dentro.
R. Rubus


Hoje acordei, sem fome de poesia. Como não habitual, não abri as janelas. Não quis que a chuva molhasse o soalho gasto nem que se adentrasse mais no meu coração também gasto. Melancolicamente serena, li cartas de amor de Höderlin e enfrentei A Tempestade castriana. Por acidente, encontrei poesia nas entrelinhas da prosa e fiquei com fome... "- Merda!", pensei dentro de mim, alto e bom som, apesar do silêncio pesaroso fora de mim. Só queria prosa, com frases simples e curtas, discursos directos, nada de complicado. Com a respiração descompassada, levantei-me sem tropeçar na fúria dos meus pés. Peguei no teu livro de poemas e li versos de quem ama "tão claramente" que como pode a minha escuridão ser tão ou mais clara do que esse amor puro e infinito? Fiquei com tanto nojo de mim que fechei imediatamente o livro num gesto de renúncia. A partir daí, decidi renunciar toda a poesia do mundo e atirar-me para uma cova funda sem sol, celebrando o funeral de mim mesma numa bela manhã de domingo.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

é tudo e nada

e eu, em verdade, já não fazia nada por aqui...
Mário de Sá-Carneiro


tudo é volúpia
tudo é desejo
tudo é efémero
tudo é falso

nada é puro
nada é altruísmo
nada é eterno
nada é verdadeiro

tudo é artifício
nada é realidade
tudo é desamor
nada é amor

sábado, 8 de fevereiro de 2025

Larguei-te na ria, meu amor.

Larguei-te na ria.

Deixei-te ir 
como um barco 
a arder
num funeral viking.

Antes agarrei-te
ou tentei
mas as tuas mãos 
já cobertas de lodo
escorregadias
tocaram as minhas
fugazmente
e dançaram 
a dança do esquecimento.

Lentamente
e silenciosamente
afundaste-te
na maré alta
sem pestanejar
sem bracejar.

Triste e melancólica
sentei-me na margem
à procura dos olhos d'água
mas nunca mais os vi.

Agora 
resta-me esquecer-te 
para sempre.

Apagar da memória que o sorriso mais belo que alguma vez vi foi o teu.






quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

uma casinhota à beira ria

Como te poderia deixar, se não estiveste?

Como te poderia amar, se não entraste?

Como poderias (querer) entrar, se nem laje, nem porta existem?
Como poderias (querer) trocar uma mansão por uma casinhota? 

Será sobre as ruínas de uma casa impossível
que (re)construo a minha casa possível.