domingo, 3 de agosto de 2025

estrela com dentes

No céu negro e translúcido
explode uma estrela cadente,
torta e deformada.

Dilacerada pelo abraço,
rasga-se em duas,
desaparecendo como oiro líquido.

Despenhada das alturas,
desprende os olhares ansiosos e teimosos
do peditório dos desejos cósmicos.

Poderá ser uma estrela cadente: 
o anúncio do fim? ou, o princípio da perpetuidade?

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

desabafo sobre uma pergunta retórica

Será hoje?
Amanhã? Depois?
Que importa?
Amanhã é igual a hoje
Amanhã já foi...
António Ferro


Pergunta: Quantos verões serão precisos para te ter?

Resposta: Todos, até eu morrer.

segunda-feira, 21 de julho de 2025

morfologia do milho

À sombra do milho verde
Zeca Afonso


corre uma aragem morna
pelo horizonte verde monte
onde a única cinemática possível
é o bramido das águas
sobre os milharais de vento

as espigas bebem e dançam:
processo de fermentação lenta
para cozer o Pão de cada dia

no campo
tudo se aquieta,
e nas barbas de milho
são encontrados Fios de Ariadne.




segunda-feira, 30 de junho de 2025

ermita funcional

Educação da tristeza
Valter Hugo Mãe


ser ermita em pleno domínio das suas disfunções:
caminhar sobre as águas
sem nunca afundar
caminhar sobre a lama
sem nunca sujar
pairar como se nada nem ninguém existissem

sorrir meditativamente
escrever prosa com finais felizes
fingir gostar de poesia
cultivar uma aparência anímica saudável
não perguntar nem questionar
amar tudo e todos
anular o desejo sentimental
morrer internamente

sexta-feira, 27 de junho de 2025

contemplação poética das entranhas

eu sou lava e sol ardente
em contínua combustão.
José Carlos Soares


Tocar na lava queima.
Olhar o sol de frente cega.
Contemplar um vulcão
fascina e assusta,
tal como contemplar 
as nossas entranhas.

O ritmo e silêncio 
vertiginoso da poesia
faz-nos dançar
entre os versos e reversos
dos nossos abismos.

Como bailarinos profissionais 
almejamos o equilíbrio perfeito, 
com pontas rígidas e frágeis,
em pequenos e rápidos movimentos, 
para fugirmos da lava que escorre
até às profundezas 
do nosso ego dantesco.


(Poema sugerido pelo poeta Alberto Pereira

segunda-feira, 23 de junho de 2025

ausência ausente

Ó tanto céu me viu nascer, me viu falhar
Vila Martel


Sou uma completa ausência de mim mesma.
Nunca estou. Nunca sou.
Ninguém me vê. Ninguém me sente.

Enquanto as estrelas não me levam, andarei por aqui a vaguear como um cadáver adiado que não procria; só procrastina na podre rotina.