sábado, 16 de novembro de 2024

a igreja

Hoje passei em frente a uma igreja e vi um funeral. Que triste que é… As vestes negras e os rostos de fuligem expressam a estupefação diante da única certeza em vida - a morte.

Passo devagar e de soslaio, entre os vultos e as sombras. Não quero ser notada. O sol ilumina o adro, timidamente, e foge para a praça dos vivos e felizes. Encaminho-me para lá. Também quero estar viva e feliz. Chego e sento-me num banco ao sol. Pouso os livros, fecho os olhos e imagino como hoje seria um bom dia para casar e não para morrer. Abro os olhos, sorrio, encho os pulmões de fantasia e visto-me de branco. Entretanto, uma nuvem tapa o sol. Fica frio e escuro. Visto-me de preto e espero que ele volte, tal como as mulheres esperam os pescadores na praia. Eu sei que ele não volta nem vai voltar. Fugiu para outro adro ou para outra praça. Suspiro e levanto-me deste banco que o sol já aqueceu. Paro, olho para trás e percebo que foi tudo um devaneio. 

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

A noite cai.

A noite cai.
As esperanças e os sonhos também.
Estilhaços no chão.
A noite cai.

A lua olha-me
misteriosamente.
As nuvens véu
tapam o seu fulgor,
tornando-a mais pálida,
esquálida,
e desvanecida.

O beijo crepuscular
- fugaz -
é mais breve do que o instante.
Os lábios lunares
tão perto
dos lábios solares,
mal se tocam,
porque a velocidade do tempo 
impossibilita o toque.

Todas as noites,
e todos os dias,
a lua corre atrás do sol
e o sol corre atrás da lua,
na esperança de
um dia
se colidirem
num beijo eterno.

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

andar às ar(r)anhas

A vida é tão estranha que se entranha e arranha como uma aranha.

Todos os dias estranho-me, mas não me entranho. Só me arranho. 

                                                                                                        E é nas cicatrizes que te procuro 

sem nunca te encontrar. 

sábado, 9 de novembro de 2024

o estendal da melancolia

Hoje estendi a melancolia ao sol no jardim encantado, delicadamente pousado na varanda da minha loucura. Prendi na corda fantástica, com molas ilusórias, farrapos e trapos com trinta e cinco anos, sonhos perdidos, paixões não correspondidas, amores adiados, promessas falhadas. Ficou tudo estendido, esticado, ressequido, como um cadáver não adiado. 

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

saudade fantasma

Lembra-me um sonho lindo
Fausto


Sentada no bar da faculdade ouço uma guitarra. Detenho-me e lembro-me de ti; da beleza que emanas sempre que tocas nas cordas. Fecho os olhos e imagino-nos aqui. Estudantes de literatura, jovens, apaixonados e sonhadores. Sem horas para voltar a casa. Só largamos as mãos um do outro para ler e escrever. Nada mais existe. Que felizes que estamos... Entretanto, a guitarra cala-se. Abro os olhos e penso que isto poderia ter sido a nossa vida. Fico nostálgica e fujo para a biblioteca.

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

cada pessoa, cada lugar

Cada um de nós tem o seu lugar no mundo e todos os dias assumimos isso, como se estivéssemos presos numa cápsula do tempo, enterrada na terra da ilusão.

O significado de cada nome próprio depende de quem nos chama e de como nos chamam. E isso determinará também o nosso lugar no mundo e no coração de cada um de nós.

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

asas de zebra

"Tenho pena de ti às riscas": de como perdes as tuas penas riscadas nos limites das águas doces e salgadas.

Os salpicos do mar desenham as tuas asas-zebra,
com maciez,
e ajudam-te a voar com a leveza da seda.

Na praia deserta, 
por onde passaste,
caem chuviscos,
enquanto a brisa morna
aquece dois corpos interditos,
sedentos do sol ausente.