segunda-feira, 23 de junho de 2025

ausência ausente

Ó tanto céu me viu nascer, me viu falhar
Vila Martel


Sou uma completa ausência de mim mesma.
Nunca estou. Nunca sou.
Ninguém me vê. Ninguém me sente.

Enquanto as estrelas não me levam, andarei por aqui a vaguear como um cadáver adiado que não procria; só procrastina na podre rotina.

quarta-feira, 18 de junho de 2025

Quantos verões serão precisos para te ter?

Talvez todos os verões, que ainda me restam, 
não sejam suficientes. 
Talvez sejam precisos outros verões, 
de uma vida que jamais amanhecerá.

sábado, 14 de junho de 2025

a entrega de um corpo

 Entrega
 Helena Sarmento

A entrega de um corpo é mais do que um ato quotidiano, fisiológico ou biológico.
É um gesto espiritual, de entrega da nossa alma, das nossas ideias, dos nossos sonhos, dos nossos medos. 
A entrega sem reservas pede a metamorfose do nome para o verbo que se reflete reflexivamente na reflexão pronominal, sendo imperativa a conjugação em todos os tempos e modos verbais da carne.

segunda-feira, 9 de junho de 2025

uma mão cheia de quases

Vida,
sequência inacabada
de quases e quiçás
que nos leva a nenhures
ou a efémeros oásis.

Vida,
ilusão ótica 
da possibilidade
que nos inebria de sonhos
ou de cintilantes esperanças.

Vida,
visão baça
que só permite o vislumbre da felicidade
ou o deslumbre do abismo.

Vida,
uma mão cheia de quases
que nada agarra
e tudo larga.


terça-feira, 3 de junho de 2025

estuário ventricular

cabeça pousada
olhos na lua crescente
que as nuvens insistem cobrir

respiração branda
mãos no para-sol inquieto
que o lenço teima tapar

abraço longo
dedos no dorso pulsante
que o casaco cisma esconder

pálpebras cerradas
lábios na boca vertida
que os dentes ponderam morder

Há uma calmaria no estuário 
sempre que a barca do paraíso 
- atraca -
no meu coração.




sexta-feira, 30 de maio de 2025

pão nosso que estais no inferno

Como não queres que clame por mais pão, 
se as migalhas que atiras para o chão,
nem uma refeição dão?

terça-feira, 27 de maio de 2025

porta-cofre

O pesadelo da tua ausência tornou-se infelizmente numa realidade concreta, vincada, apertada e sufocada. 

Há uma escassez e distância emocionais que ditam o quotidiano. Já não bebo a água do céu da tua boca. Já não como o mel das pontas dos teus dedos. Já não respiro ar poético dos teus decassílabos. Já não cheiro o pólen do teu peito espumoso. Já não vejo o brilho dos teus olhos-ria.

(já não e talvez nunca mais)

Estou desnutrida e vivo uma apneia funcional. Os meus sentidos apagaram-se perante uma vida e promissora e vibrante.

Mesmo assim, ainda tentei abrir a porta da sala poente, onde costumávamos ler poesia, mas tu trancaste-a a sete chaves. Bati, bati e bati. Nada se abriu. Tudo se fechou.