quinta-feira, 31 de outubro de 2024

somar/subtrair

 “Às vezes é mais fácil somar do que subtrair.”

Porém:
Não amar é mais fácil do que amar.
Não viver é mais fácil do que viver.
E morrer é mais fácil do que não morrer.

Viver, amar, morrer. 
Verbos de incalculáveis subtrações e divisões. 
Só somamos quando renascemos.

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

estilhaços de vidro fosco

cabeça explode
coração implode
miolos estourados
lábios rasgados
dentes partidos
olhos exauridos


As palavras não ditas são como quadros poeirentos, nunca saídos do lugar, pendurados em paredes calosas e desmoronadas. Ninguém os contempla, ninguém os limpa. O quarto desarrumado e destruído é um prenúncio de exumação. As janelas e portas estão abertas, porque estão caídas. Não porque alguém as abriu. Ninguém quer entrar num quarto destes. Só o vento norte entra e limpa o cheiro nauseabundo da putrefação dos meus cacos.


Escombro meu,
Escombro meu,
Há alguém mais escabroso do que eu?


sábado, 26 de outubro de 2024

Como me dizes não a sorrir?

Como me dizes não a sorrir,
se o meu mundo está a ruir?

Como me vês a afogar,
e não me vens salvar?


(silêncio)
(coração nas mãos)
(silêncio)


Como num naufrágio interior morremos
e morremos e morremos e morremos...

E eu...
que estava tão pronta para (re)nascer, 
só me resta morrer.

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

estrada larga

Por vezes, só quero que o meu horizonte seja uma estrada larga, longa, vazia, silenciosa, escura e chuvosa, para que os meus olhos cansados possam simplesmente repousar na doce melancolia de viver.

terça-feira, 22 de outubro de 2024

da semente à flor

As situações são como as flores. Desabrocham naturalmente e no seu devido tempo. Nada lhes apressa, a não ser a sua própria condição de florescer. Antes da defloração, ou se revelam sórdidos cravos-de-defunto, ou delicadas orquídeas. A única diferença é que as situações não precisam das estações do ano para se revelarem. Revelam-se, imperiosamente, a qualquer momento. 

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

sobre não adiar o amor

Não posso adiar.
António Ramos Rosa

Não
Não posso
Não posso mesmo
Não posso mesmo adiar
Não posso mesmo adiar o
Não posso mesmo adiar o amor

Um amor que é o amor.

Um amor inigualável, 
escrito no rastro cintilante
de tudo o que é cósmico.

Um amor atemporal,
cujos ponteiros do relógio 
são as setas do Cupido,
eternamente cravadas 
no coração tremente.

Como posso? Como posso eu adiar um amor entre o instante e a eternidade? 

Se eu um dia tiver de adiar este amor, será só porque os Deuses assim o mandaram.





quinta-feira, 10 de outubro de 2024

a árvore e a folha

Vi-te ontem,
de lua na boca,
a olhar as estrelas.

Vi-te ontem,
debaixo de um céu riscado,
a engolir planetas.

Vi-te ontem,
de mãos atadas,
a tocar Saturno.

Vi-te ontem,
de peito aberto,
a navegar pelo junco.

Sim. Vi-te ontem,
tardio e fugidio, 
a caminhar pelas areias finas da ampulheta.

Não. Não te vejo hoje. 
Os ventos sopraram-te para sul,
onde pousaste como folha,
ao lado da árvore,
de onde caíste.




domingo, 6 de outubro de 2024

romance(ira)

Será isso / aquilo a que se chama o amor?
Nuno Júdice

As tuas costas,
planície alentejana,
de horizontes largos e ternos,
onde me deito e me perco.

Os meus olhos,
bagos de romã,
vermelhos e carnudos,
sangram a ausência das tuas mãos.

Encontro de dois corpos:
mera casualidade
ou
fatal destino

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

leetaaargiiiiaaaaa

l
le
let
leta
letar
letarg
letargi
letargia

Veleiro à deriva, à espera de ventos favoráveis e de águas mansas.
Vela a meia haste, leme partido, âncora afundada.
Sobrevive a proa para lentamente rasgar o doce luar sobre as águas oníricas da incerteza.

Navegar é sempre mais fácil, com duas velas içadas. 

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

"Lá vem o poeta!"

Que poesia é essa que trazes nos olhos?
Que por onde passas,
tudo transformas em versos?
Estrofes neve ou cinza.
Sílabas ardentes e líquidas.

Que poesia é essa que trazes nas mãos?
Que onde tocas,
tudo transformas em música?
Cantigas de amigo ou de amor.
Cadências de soneto.
Locus amoenus orquestral.

Que poesia é essa que trazes no coração?
Que faz da sombra, luz?