segunda-feira, 30 de junho de 2025

ermita funcional

Educação da tristeza
Valter Hugo Mãe


ser ermita em pleno domínio das suas disfunções:
caminhar sobre as águas
sem nunca afundar
caminhar sobre a lama
sem nunca sujar
pairar como se nada nem ninguém existissem

sorrir meditativamente
escrever prosa com finais felizes
fingir gostar de poesia
cultivar uma aparência anímica saudável
não perguntar nem questionar
amar tudo e todos
anular o desejo sentimental
morrer internamente

sexta-feira, 27 de junho de 2025

contemplação poética das entranhas

eu sou lava e sol ardente
em contínua combustão.
José Carlos Soares


Tocar na lava queima.
Olhar o sol de frente cega.
Contemplar um vulcão
fascina e assusta,
tal como contemplar 
as nossas entranhas.

O ritmo e silêncio 
vertiginoso da poesia
faz-nos dançar
entre os versos e reversos
dos nossos abismos.

Como bailarinos profissionais 
almejamos o equilíbrio perfeito, 
com pontas rígidas e frágeis,
em pequenos e rápidos movimentos, 
para fugirmos da lava que escorre
até às profundezas 
do nosso ego dantesco.


(Poema sugerido pelo poeta Alberto Pereira

segunda-feira, 23 de junho de 2025

ausência ausente

Ó tanto céu me viu nascer, me viu falhar
Vila Martel


Sou uma completa ausência de mim mesma.
Nunca estou. Nunca sou.
Ninguém me vê. Ninguém me sente.

Enquanto as estrelas não me levam, andarei por aqui a vaguear como um cadáver adiado que não procria; só procrastina na podre rotina.

quarta-feira, 18 de junho de 2025

Quantos verões serão precisos para te ter?

Talvez todos os verões, que ainda me restam, 
não sejam suficientes. 
Talvez sejam precisos outros verões, 
de uma vida que jamais amanhecerá.

sábado, 14 de junho de 2025

a entrega de um corpo

 Entrega
 Helena Sarmento

A entrega de um corpo é mais do que um ato quotidiano, fisiológico ou biológico.
É um gesto espiritual, de entrega da nossa alma, das nossas ideias, dos nossos sonhos, dos nossos medos. 
A entrega sem reservas pede a metamorfose do nome para o verbo que se reflete reflexivamente na reflexão pronominal, sendo imperativa a conjugação em todos os tempos e modos verbais da carne.

segunda-feira, 9 de junho de 2025

uma mão cheia de quases

Vida,
sequência inacabada
de quases e quiçás
que nos leva a nenhures
ou a efémeros oásis.

Vida,
ilusão ótica 
da possibilidade
que nos inebria de sonhos
ou de cintilantes esperanças.

Vida,
visão baça
que só permite o vislumbre da felicidade
ou o deslumbre do abismo.

Vida,
uma mão cheia de quases
que nada agarra
e tudo larga.


terça-feira, 3 de junho de 2025

estuário ventricular

cabeça pousada
olhos na lua crescente
que as nuvens insistem cobrir

respiração branda
mãos no para-sol inquieto
que o lenço teima tapar

abraço longo
dedos no dorso pulsante
que o casaco cisma esconder

pálpebras cerradas
lábios na boca vertida
que os dentes ponderam morder

Há uma calmaria no estuário 
sempre que a barca do paraíso 
- atraca -
no meu coração.